domingo, 22 de agosto de 2010

12 - O ENCONTRO DA OUTRA METADA

Dificuldades iniciais

Pode-se advinhar que, pelo mês de março de 1931 tinha já José Ignácio a seu lado como esposa Oreselina Teixeira Rodrigues, ou simplesmente Zelina, primogênita de oito irmãos trazidos à vida até aquela altura pelo casal José Teixeira de Souza e Maria Paulina Teixeira. Da concordância paterna à celebração desse casamento não foi muito longo o tempo decorrido, esse lapso correspondeu tão-somente ao tempo gasto por José Ignácio para assegurar-se de que tivera a permissão do tinhoso e sistemático Nhonhô de Souza para os breves esponsais, visto como lhe fora também exigido brevidade na realização do casório, nada mais de que um mês. Como se sabe, naqueles tempos, na concessão da mão de uma filha a pedido da espécie, a última, monocrática e definitiva palavra era do pai, que, quando muito fosse, podia permitir-se ligeira consulta à mãe da noiva, mas em mero descargo de consciência ante a decisão já tomada a priori, em lacônica indagação “o que você acha desse rapaz?”, E, no caso particular do seu Nhonhô, nada foi muito diferente, com efeito deve tudo ter ocorrido como era de praxe, na medida em que Dindinha, para os netos, e Maricas, para ele, o marido, como a maioria das mulheres de seu tempo, até por seu temperamento dócil e sempre propenso à aceitação do comando marital, de bom grado deixava ao alvedrio do esposo a tomada de todas as decisões, inclusive essa de que ora se trata.
Ao depois, quem com o fazendeiro José Teixeira de Souza mantivesse convivência mais estreita ou, de alguma forma, desfrutasse mais longamente de sua intimidade, sabia-o arrogar-se o direito a certas singularidades. Nhonhô de Souza (esse apelido dele, “Nhonhô”, como se sabe, é resultante de dupla forma aferética de “Sinhor”, ou “Sinhô”, com dupla apócope do “r”, gerando Nho-nhô, e, por fim, Nhonhô, era usual nos falares sertanejos e matutos para designar dono de glebas, patrão), assim era identificado no círculo de suas relações pessoais e na intimidade familiar, assinava-se, porém, José Teixeira de Souza nos atos civis e cíveis, mas o que mais lhe passaria a agradar mesmo, algumas décadas depois, aos ouvidos à alma era o carinhoso “Totô” emitido em coro pelas boquinhas tenras e avermelhadas dos inúmeros netos que o viriam a arrodeá-lo nos dias de festa na fazenda. Foi um homem de poucas letras e de quem se poderia afirmar simplesmente que se destacou dentre os cidadãos de sua época, que fez das lides rurais o meio de subsistência de uma prole numerosa que atingiu à roda de quatorze filhos, criados com rigor e disciplina. Pessoalmente, conduzia-se com seriedade e retidão em suas relações de interesse, ao tempo em que tampouco não se furtava a uma demanda judicial , ainda que de desfechos invariavelmente demorados, onerosos e imprevisíveis, como soíam ser já àquela época tal como são hoje, aliás. Não raro se pugnava até em desfavor de um simples confrontante de quem se pretendesse reaver alguns metros de terras surripiados em deslocamentos de cercas demarcatórias nas caladas da noite. Dir-se-ia que esse viés algo belicoso dos proprietários de terras, ou o gosto por uma disputa em juízo, pudesse até mesmo dissimular mero desejo de afirmação de status, afirmação a qual deveria preservar-se por fazendeiro que então se prezasse, pouco importando se de grande ou de médio porte sua exploração agropastoril, este era efetivamente o seu caso. Fisicamente, era magro, moreno, gogó saliente, olhos levemente gateados, estatura de média para um pouco mais, voz avolumada, algo teimoso, mas lhano no trato com todos, não dispensava paletó sobre a comisa de colarinhos abotoadas, com gravata em ocasiões que se lhe afigurassem mais solenes. Já Didinha, baixinha, cadeiras largas, voz meio rouca, cabelos anelados, sempre sorridente e de indefectível doçura no olhar e nos gestos, não parava um instante, era uma formiguinha para trabalhar.
Voltando-se para os esforços empreendidos por José Ignácio para concretizar seu intento de casar com a moça Zelina, oportuno se afigura agora narrar em ligeiras palavras a estratégia que pôs em execução para lograr ouvir o ansiado sim da boca do Seu Nhonhô de Souza, cuja pessoa acaba-se de dar conhecer a eventuais leitores deste texto.
Corriam meados do fervescente ano de 1930. Iniciava-se uma tarde de quarta feira, José Ignácio tornara-se de Ubá onde fora comprar adubos e fertilizantes do então conhecido revendedor Antônio Luderer para uma lavoura de fumo que se pretendia dar início na Fazenda do Paiol, decidiu por ligeira parada no sitiozinho de seu amigo Juca Simões, situado à margem da estrada logo à saída da vila de Córrego Alegre. O sol lançava seus últimos raios sobre o laranjal à margem da estrada, a espevitar nos arbustos os frutos quase maduros, e José foi-se aproximando vagarosamente e, ainda montado, com mão esquerda a retesar a réda de seu velho condutor capricho e com a direita a segurar um dos esteios do cercado de tabocas, ficou alguns instantes a observar os movimentos de Juca que fechava as derradeiras caixas de laranjas colhidas para atender às encomendas dos últimos dias. Juca, ou perceber a presença do amigo, levantou a cabeça e disse:
- Ôi Zé, apeie e vamos chegar.
- Desculpa, Juca, mas vou poder não - respondeu Zé Inácio -, tá meio tarde e ainda tenho à frente algumas boas léguas a percorrer até a casa da prima Romualda Correa onde devo pernoitar e, amanhã bem cedo, prosseguir até o Paiol, onde me aguardam aguardam madrinha Chiquinha e o velho Antônio Ignácio, este para um particular importante. Parei só porque precisava saber se está mesmo a fim de ir comigo no sábado à Fazenda do Antônio Ribeiral, lá haverá aquele futebolzinho em meio à tarde, seguindo-se, no começo da noite, a festa de Santo Antonio. A noitada promete ser bastante animdada, interessante: muitas famílias da vizinhança já estão convidadas, e os preparativos, pelo que já me disse Zé Ribeiral, estão a capricho.
- Claro, amigo, pode contar comigo, aquiesceu Juca com entusiasmo, sabia já desse seu interesse em estar com José Ribeiral para tratar de negócios e, aproveitar para distrair e dar bons tratos ao corpo, às idéias e às vistas com toda a movimentação que se espera.Sem ser um esperto em matéria de sentimento,Juca Simões percebeu a ansiedade de Zé Ignácio e a razão maior dessa nova visita à Fazenda dos Ribeiras ...
Quando pedaços de treva já se insinuavam por entre árvores e casebres da pequena Vila do Córrego Alegre, Juca, ao perceber que o visitante se preparava para partir, pediu que ele aguardasse um instante, afastou-se e retornou com um bornal de laranjas que entregou a José Ignácio para levar para Dona Chiquinha, com pedido de bênçãos. José Ignácio agradeceu-lhe a gentileza, despediu-se com um “até mais ver” e, com leve toque de ambos calcanhares nas ilhargas de capricho fê-lo sair em marcha lenta deixando atrás esparsa nuvem de poeira fina. Com Juca Simões ficara apalavrado o plano do fim-de-semana: sábado, ao início da tarde, se encontrariam na encruzilhada do sítio do José Pereira Tavares, e de lá seguiriam juntos para a Fazenda dos Ribeirais.
Quase noite de terceira-feira, José Ignácio apeava de capricho à entrada do alpendre da Fazenda do Paiol. E dona Chiquinha, com suas longas saias de morim preto e leve estamparia floral a cobrir-lhe os pés agasalhados nas chinelas de algodão, de ouvidos atentos, percebeu logo a presença do afilhado, lá de cima cozida ao portal da sala saudava a chegada de José, com a pergunta já por ele esperada:
- Enfim de novo aqui, José! Como foi esta tão longa viagem, quase dois dias fora de casa, daqui saiu segunda-feira bem cedo e só agora com a noite chegando vem me dar as caras, algo de muito importante deve ter te distraído por aí, atinou dona Chiquinta. Pois é, Sô Antônio Ignácio, que aqui veio para atender o seu chamado, já não se aguentava de tanta ansiedade por sua chegada, aduziu dona Chiguinha.
- De fato, madrinha, demorei-me mais do que pretendia - intentava José acalmar os nervos agitados da velha, antes de lhe dar minuciosa conta de todos os seus passos e diligências levadas a cabo durante essa ausência

quinta-feira, 25 de março de 2010

11 - APENAS PARA ESPAIRECER ENQUANTO ESPERA (II)

“SÔ ORVIDO”!!!

Escrevi este texto em fins de 2003. Fi-lo apenas para registrar um momento feliz de etapa de uma viagem maior com parada em casa dos queridos cunhados, Marly e Marcos Alpino, no sítio do casal localizado na município de Esmeralda-MG, que dista uns 40km de Belo Horizonte. Posteriormente, contudo, reli-o e
dele acabei gostando mais de quando o escrevi, e me pareceu seria interessante aqui postá-lo para entretenimento de algum ou alguns de meus seguidores mais fiéis e/ou ou persistentes. Ei-lo a seguir.

Os tios de Thaïs e Xandinha chegariam de Brasília à hora do almoço. No Sítio Brejão, crianças e adultos aguardavam o casal de quase velhinhos, com ansiedade e fome. Mas eles não tardaram muito, mais ou menos na hora prevista, à roda das 14h15 do dia 26/12/2003, anunciaram-se no grande portão de acesso ao sítio, todos correram para recebê-los, incluindo os sete cães de guarda. Ansiedades desfeitas, abraços calorosos e cumprimentos de praxe, seguiram-se os últimos retoques no almoço que já aguardava sobre a trempe do fogão e, por fim, travessas, pratos e talheres na mesa. Ah, sim, está-se deixando de registrar, Vô Marquinhos pediu tempo, abriu um “cabernet” e serviu um cálice para cada um dos tios de Brasília, um para si, a Vó Marly não quis do vinho. Logo após, almoçaram todos farta e alegremente.
Mas, como é bem sabido, criança gosta muito de sorvete depois das refeições, e não havendo em casa dessa sobremesa, Xandinha e Thaïs aproximaram-se do tio de Brasília, e a primeira não se fez de rogada, Tio, você bem que podia comprar um sorvete para nós. O tio meio surpreso, respondeu-lhe, Creio que aqui perto não tem sorvetes à venda. Ambas as meninas replicaram em coro, Tem sim, tio, ali à direita da casa da Tia Ana Paula, nas proximidades daquelas mangueiras, mora um velhinho que vende sorvete para nós, é só chamar que ele vem até nós. Se é assim, concordou o tio de Brasília, vamos chamá-lo, Como é o nome dele, perguntou. Responderam as meninas, Pode chamá-lo por “Sô Orvido”, ele vem aqui rapindinho. O tio de Brasília limpou bem a garganta e o mais alto que pôde, estimulado pelas taças de vinho que lhe serviu o Vô Marquinhos, gritou, Sô Orvido, Sô Orvido, Sô Orvido! Como o sorveteiro não deu nenhum sinal de vida, as duas meninas resolveram juntar suas vozes e gritar também por ele, Sô Orvido, Sô Orvido, Sô Orvido! Nada. O tio de Brasília disse então para as meninas, esse Sô Orvido é surdo ou, se algum dia existiu, hoje já não existe mais. Mas as meninas insistiram, Tio, ele existe sim, e a partir de então o tio de Brasília e as meninas vez por outra bradavam o nome do Sô Orvido, e o suposto sorveteiro vizinho nada respondia.
A verdade é que, ao longo de todos aqueles agradáveis dias em que os tios de Brasília estiveram em companhia dos vôs Marquinhos e Marly e das duas meninas, “Sô Orvido” foi um vocativo pronunciado inúmeras vezes no sítio e na casa de BH.
Já em Brasília o tio até hoje fica intrigado a pensar que Sô Orvido não passa de um ser fictício, criado pela intuitiva e fecunda imaginação das duas meninas, e veja-se, a propósito, que conclusão também se poderia construir: se se juntar em uma as duas palavras “Sô Orvido”, com aférese de um "o", ter-se-ia o vocábulo “sorvido”, particípio passado do verbo “sorver” que, segundo se afirma no AURÉLIO, teria influenciado a formação da palavra “sorvete”, isto é, aquele creme gelado e gostoso que a arte humana nos brindou para ser sorvido. Não é que as danadinhas das meninas Xandinha e Thaïs, talvez sem o saberem e por mera coincidência, imaginaram um sorveiteiro cujo nome tem tudo a ver com o produto do seu negócio: “Sô Orvido”.

sábado, 28 de novembro de 2009

10 - APENAS PARA ESPAIRECER ENQUANTO ESPERA (I)

Caprichos da morte


Enquanto se me madurecem idéias para elaboração da próxima postagem inerente à temática deste blog, ocorrem-me produzir algumas inserções suscetíveis de espairecer o espírito de algum seguidor mais ávido de novidades, quando os houver eventualmente. Nesse sentido, e como iniciativa vestibular, eis uma historinha que me sugeriu o velho amigo cearense Pedro Bezerra de Menezes Neto, acerca dos caprichos da morte.
Cidadão em idade avançada, durante animada festa em sua casa, na qual se festejavam, conjuntamente, o casamento de uma neta, o aniversário de outra e o batizada de um bisneto, recebe a visita da morte. Ela se identifica e comunica-lhe haver chegado o seu dia final e que, precisamente à meia-noite, ali estaria ela de volta para apanhá-lo, e, dito isto, desmaterializou-se incontinenti numa nuvem plúmbea de fumaça.
Continuou ele a divertir-se a todo pano, pulando, dançando, cantando ao som vibrante de um forró “pé de serra”, como era de seu temperamento e gosto festeiros. Á roda de 15 minutos para meia-noite, o eleito do dia deu-se conta do aviso que recebera da morte, parou, respirou fundo e deu uma saidinha até à porta da rua para bispar, ninguém na rua, a rua estava completamente deserta, esticou a vista um pouco mais longe até a casa da esquina, observou luzes acesas, algazarras e altos sons musicais. E, tomado de otimismo, Morrer que nada, vou logo até lá para me dar bem naquela festa! Rodopiou-se sobre os calcanhares, tornou ao interior da casa, pegou de tesoura e navalha, raspou rente barba e cabelos, trocou as roupas e, com nova aparência, chispou par a tal festa ...
À hora aprazada a morte voltou, adentrou a casa, dirigiu-se ao salão de festa, procurou o indivíduo, e nada. Já meio descoroçoada, convenceu-se, “É, aquele sacana conseguiu me ludibriar”. Saiu, na rua olhou para um lado, olhou para outro, mas, derrepente, viu-se despertada pelo bulício que provinha da casa da esquina, rumou para o local: muita gente a dançar e dar pinotes, olhou cuidadosamente uma por uma e, não encontrando a quem buscava, resolveu desistir da procura e encaminhou-se para o tablado onde se postavam os músicos, ali, antes de partir, passou uma última vista d’olhos pela salão e fixou-se naquele careca a esbaldar-se à toda ... “Não vou sair daqui de mãos abanando - disse para si mesma - vou "agarrar aquele careca muito saliente e espevitado", e mãos nele. O cara esperneou, esperneou o quanto pôde, mas acabou afinal dominado pela força da figura abominável que o levou para sempre.
Guardada por mim toda a relatividade subjetiva e de sentido dos textos divertidos e divertidores dessa espécie, é de inferir-se obviamente que, da historinha que acabo de reportar, decorreria a sentença irrecorrível, "a cada um pré-determinado está o dia da despedida". Nada mal se assim fosse, não é verdade? Poder-se-ia preparar-se previdentemente para a despedida, o que, aliás, não aconteceu com a pessoa do próprio contador desta estória, meu saudoso amigo Pedro Bezerra, a quem rendo minhas homenagens ... No começo de 2010, viajou com a família para uma temporada de praia em Aracaju, lamentavelmente curtíssima para ele e seus acompanhantes.

domingo, 4 de outubro de 2009

9 - PROGRESSOS E ANSEIOS DE COMPLETUDE


Cultuar o dever da gratidão ainda parece ser a atitude mais recomendável para controlar-se o fundo de egoísmo que há em todos os seres humanos e que, no juízo de Machado de Assis, explicaria o fato de que A gratidão de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz (1). Imagino, com efeito, que José Ignácio desde menino, ou intuitivamente ou por causa genética, sempre deu mostras de valorizar essa atitude nas suas relações em geral. Viu-se isso no tocante não apenas à oportunidade que lhe proporcionou sua madrinha Chiquinha ao confiar-lhe a condução das atividades e negócios da fazenda do Paiol, mas também ao empenho com que se dedicou a obter o apoio e a participação efetiva - nos esforços de levar a bom termo seus propósitos - das pessoas e/ou famílias que há algumas décadas já ali laboravam de sol a sol ao lado da viúva de Messias Santana, igualmente ao lado deste enquanto vida tivera.
À sua chegada na fazenda, José Ignácio iria lá encontrar, com as respectivas famílias e longos anos de serviços à Chiquinha, Manoel Vitorino, Epifânio, Alberto Luiz, Alfredo Aprígio e Joaquim Mutinga. Porque fossem tempos em que a grande parcela da população brasileira vivia no meio rural (parcela que se estima em mais de 60%), do trabalho ali dependia sua sobrevivência, como de certeza ocorria com aquele contingente de colonos radicados na Fazenda do Paiol, que tinha sua mantença igualmente jungida ao ganho naquelas terras, e o passadio ali desses trabalhadores só não era pior mercê do espírito generoso e altruísta que norteava a relações de Chiquinha com os seus serviçais. Ao filho de Antônio da Ignácia coube tão-somente dar sequência a esse modo de relacionamento e de ajuda mútua, o que muito cooperou para a grande transformação que logrou nos três anos que se seguiram.
Para tanto, contou o afilha de Dona Chiquinha com a ajuda incondicional do velho Manoel Vitorino, trabalhador muito sério e respeitado por todo o grupo, e a ele foi confiada nada menos que a missão de ser o braço direito de José Ignáccio em tudo que dissesse respeito aos trabalhos nas lavouras de grãos e nas culturas de hortaliças, bem como nas mais atividades que ali se desenvolviam. Por sua vez, José, de temperamento irrequieto, pouco afeito ao sedentarismo e ao ramerrão rotineiro das atividades rurais, procurava conciliar o bom andamento dos trabalhos no sítio com a necessidade que tinha de buscar, fora dali e em contatos com pessoas e parceiros da região, a realização de ganhos adicionais por meio de pequenos negócios de compra, venda e troca de animais diversos, principalmente burros cavalos de montaria. Essa vida mais ativa e movimentada era a que mais lhe agradava, até mesmo pelo gosto da aventura que dela experimentava, era uma espécie de jogo no qual poderia ganhar ou perder, e, a depender da sua astúcia em negócios, ter o prazer de dar uma manta ou passar pela vergonha de tomar uma manta. Eram expressões usuais que se cunharam naqueles tempos para significar, por exemplo, no caso de tomar uma manta, ser ludibriado em compra ou em troca, adquirindo o mau como bom (2). Por esse caminho, conseguiu Zé Ignácio quitar parte significativa das dívidas de Chiquinha e firmar conceito de confiança e credibilidade perante círculo razoável de relações, de tal forma que, na virada para a década de 1930, já estava a vislumbrar animadoras possibilidades de alcançar desejável equilíbrio nas contas do sítio. Embora continuasse “em ser” a dívida da hipoteca, os juros sobre ela incidentes vinham sendo pagos em dia ao credor, o que afastava qualquer risco de este torná-la exigível antes de expirar o prazo contratado para o pagamento, o que somente ocorreria não antes de três anos depois, havendo, portanto, folga bastante para conseguir-se naquele lapso o recurso necessário ao resgate de dito compromisso.
Ao alcançar o afilhado de Dona Chiquinha a idade de 21 anos, sua madrinha começou a dar mostras de preocupação quanto ao seu futuro, advertindo-o iterativas vezes quanto a conveniência de ele procurar uma moça de boa família para casamento, porquanto até então, ao que lhe chegava ao conhecimento, ele se satisfazia apenas com namoricos aqui, outros ali, outros em eventuais festinhas de roça, todos passageiros, sem futuro, “nada de coisa mais séria”, como advertia e desejava a boa velha Chiquinha. Entretanto, com a continuidade dessas zangas e repreensões, o pai foi pouco a pouco incluindo os desejos da madrinha como propósito adicional de suas cavalgadas pela região. Já não eram, com efeito, andanças apenas no interesse de negócios ou à procura de entretenimentos ou desafogos para as necessidades do corpo e/ou da mente. Algo mais passou a incluir-se na ordem de suas cogitações, a calhar o intento natural em sua idade de querer casar, ter a companheira a seu lado, constituir a prole. De todo o modo, fundo tocava José Ignácio a circunstância de que sobre os seus ombros pesava a responsabilidade de arcar com a subsistência praticamente de duas famílias, ante a avançada idade de Seu ntônio Ignácio, a ele punha-se o encargo de ajudar na criação e encaminhamento das suas irmãs filhas da parte de sua mãe Maria e, depois, da prole advinda da união de seu Antônio com a "tia " Cecília.
Nada obstante, sopesadas as dificuldades recorrentes àquele seu momento de vida, um desiderato veio cada vez mais ganhar destaque em seus pensamentos. Nessa ocasião, ele já havia feito amizade com um rapaz apelidado de Juca do Simões, tinha a mesma idade, era filho de humilde produtor de laranjas situado nas proximidades de Córrego Alegre, povoado que distava cerca de duas léguas da cidade de Ubá. Identificou-se com Juca Simões, dado que também este possuía temperamento ativo e buliçoso, porém mais ousado e destemido que Zé Ignácio, o que vinha confirmar feliz assertiva de um dramaturgo/foniatra brasileiro de que os amigos são pessoas que nos completam. (3). Nas suas viagens gostava Zé Ignácio de ter a companhia do rapaz, decerto até pela razão de sentir-se pessoalmente mais fortalecido, mais seguro. Os dois tornaram-se assim uma dupla bastante conhecida em toda a região, valendo ressaltar o fato de que Juca Simões, quiçá por sua origem mais modesta contrapondo-se a ares de desassombro e ousadia , era olhado com preconceito e desconfiança por donos de sítios e fazendas por onde transitasse em companhia de Zé Ignácio, o que, consoante situação que se reportará em postagem subsequente, viria criar-lhe alguns óbices e desconfortos quando decidiu empenhar toda sua capacidade de sedução e convencimento na tentativa de levar a cabo a conquista amorosa mais séria de sua vida.
REFERÊNCIAS:
(1) – Machado de Assis, CONTOS, Almas Agradecidas, Série Bom Livro, Editora Afiliada, 26ª Edição, pág. 19.
(2) – Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, NOVA DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA, 1ª edição (13ª impressão), verbete “manta”, pág. 881/882.
(3) – Pedro Bloch, VOCÊ QUER FALAR MELHOR?, Editora Bloch, 4ª Edição, Prólogo.









sábado, 19 de setembro de 2009

8 - LIMIARES DE UMA NOVA ETAPA

Caia a tarde daquele sábado de outubro - justo o segundo sábado após as tratativas que tivera com sua madrinha Chiquinha -, e José Ignácio pisou novamente a Fazenda do Paiol. Dessa feita, para ali permanecer em definitivo, não apenas para cuidar de sua madrinha enquanto ela vivesse, mas também para levar a cabo a missão de satisfazê-la no que mais ela aspirava àquela altura da vida: ver refeito o cenário de prosperidade e fartura que todos quantos ali viviam desfrutaram em passado não muito distante.

Enquanto José Ignácio recebia as bênçãos de boas vindas de dona Chiquinha, Epifânio, negro de meia idade que tanto tinha de feio quanto de prestativo e puro de caráter, incumbiu-se espontaneamente de cuidar dos dois animais que José Ignácio obtivera por empréstimo na Fazenda de Quincas Martins, e deles agora se valeu para sua mudança, um cavalo de montaria e um burro que transportou no dorso um alforje velho com roupas, algumas ferramentas de trabalho e objetos de uso pessoal.

De antemão sabia o pai que a situação que iria enfrentar era bastante adversa: de ano a ano mais minguava a produção das lavouras que se tocavam no sítio, cresciam as dívidas de Dona Chiquinha com fornecedores e ruralistas da vizinhança, e, com as atividades agrícolas a caminho do colapso, era cada vez mais previsível a probabilidade de vir esse patrimônio a ser entregue a tais credores, inda mais que a um deles Dona Chiquinha já havia sido compelida a assinar um contrato de hipoteca sobre o imóvel a garantir dívida de maior vulto.

Corria o mês de outubro e já era tempo de iniciar-se o plantio do arroz, milho e feijão, ter-se-ia, com efeito, de aproveitar a chegada a qualquer momento das primeiras chuvas. Para esse mister, José Ignácio sentiu o ânimo fortalecido ao ver nos olhos de sua madrinha aquele brilho indisfarçável de otimismo, embora sempre objetiva e de poucas palavras, suas reações ela as expressava mais pelas mudanças de fisionomia, e poucas vezes o sobrinho notara nela tamanha animação, não obstante se lhe observassem instantes de abatimento em razão do cansaço pela faina do sítio e, mormente, pelo avançar da idade.

José, Dona Chiquinha logo fez avisar, nestes últimos dias com ajuda de Maria Crioula mudei algumas coisas aqui dentro para acomodar melhor todo mundo, aquela camarinha que dá vista para a várzea e que era minha, com cama de casal e o velho guarda-roupas, passa a ser pra você, e este quarto aqui, às minhas costas, será agora o meu, nele já tenho algumas coisas minhas, como o catre, o velho baú de madeira, o oratório de São José, é só o que preciso. Tudo bem, madrinha, não precisava se preocupar tanto comigo, se fosse o caso me acomodaria bem em qualquer cantinho no paiol lá fora, ponderou José Ignácio. Não, já está tudo assim resolvido, e você já pode ir tomar o seu banho, pano limpinho de enxugar, o pão de sabão e a bacia com água morna já estão lá no seu quarto; depois pegue seu prato em cima do fogão e vá comer, a comida é aquela de sempre, arroz, feijão, couve afogadinha, lombo de porco requentado que mantenho na lata de banha ... Obrigado, madrinha, logo, logo volto para a nossa prosa antes de dormir ...

Restabelecidos seu humor e bem-estar pelo banho e pela janta, José Ignácio disse, Madrinha, o que mais me preocupa no momento é, primeiro, ver se o Manoel ou o filho Mário Vitorino poderia amanhã dar um pulo à fazenda de Quinca Martins, prometi devolver incontinenti os animais que lá me emprestaram; e, segundo, é juntar amanhã bem cedo todos os empregados do sítio para uma conversa, gostaria que dela a senhora também participasse, porque precisamos discutir os nossos planos daqui pra frente, e é muito importante que todos deem sua opinião, e eu, particularmente, necessito saber das nossas necessidades mais imediatas a fim de termos, já no ano que vem, uma boa produção de milho, arroz e café ... Vejo que estão bem adiantados as preparativos para o plantio destes cereais, e o pequeno cafezal ainda não sofre tanto pela infestação de ervas daninhas ...

Lembrou o pai, contudo, da possibilidade de faltarem alguns corretivos de solo e fertilizantes, indispensáveis para melhoria dos índices de produção; decerto era intenção dele fazer contatos com alguns vizinhos para deles obter alguma ajuda para o suprimento de alguns desses insumos, ou, se for o caso, dar uma chegada até Ubá para negociar um fornecimento com o velho Luderer, representante de indústria do ramo, inclusive com vista aos próximos períodos agrícolas ...

Dona Chiquinha pôs José Ignácio ciente de que ouvira, com toda atenção suas preocupações ... Mas, primeiro, era de seu gosto saber como ficaram em casa seu pai e todas as irmãs e irmão, à vista do fato de que, afinal, os estava deixando apenas sem a sua ajuda e companhia, e a braços com todas as dificuldades com as quais já vinham sobrevivendo. Explicou José Ignácio que deixara todos bem, e que Seu Antônio estava bem mais animado, haviam concluído o plantio de arroz do Antônio Queiroz, e deste aguardava apresentação das contas e do que mais houvesse a receber a fim de dar tento à sua mudança para a fazenda de Quinca Martins. Contava Seu Antônio que ali ser-lhe-iam destinadas uma moradia mais descente e uma área de terras para culturas sob o regime de terças, ou seja, de tudo que viesse a colher um terço seria entregue ao patrão e dois terços reservaria para si, cabendo ao dono das terras fornecer adubos e corretivos ... Já, ao longo da próxima semana, estarão ele e toda a família tocando suas lavouras nas terras do seu velho conhecido Quinca Martins. Espero que lá, acrescentou José Ignácio, possa meu pai sentir mais à vontade e, com a ajuda da mulher Cecília e das filhas Izabel e Fiinha, obter já neste próximo ano um bom rendimento das plantações que começará a formar ...

Passava das nove horas da noite quando Dona Chiquinha e o afilhado despediram-se e recolheram-se a seus quartos ... Já deitado e acomodado o corpo cansado sobre o colchão de palha, o pai deixou-se relaxar inteiramente, mãos pousadas sobre o peito, olhos fixos no telhado empretecido do quarto, distraia-se com a dança de minúsculos insetos visíveis ao reflexo da luz fraca da candeia fixada à parede. No pensamento, que vagava confuso, apenas uma antevisão tênue de boa sorte e ventura ..

domingo, 6 de setembro de 2009

7 - EM BUSCA DE NOVOS RUMOS

Ao cair da tarde, Seu Antônio e José Ignácio apeavam de Alecrim e Mimoso sob o pau-d’alho cuja sombra já se estendia ao pé do alpendre da casa de Dona Chiquinha. A recebê-los lá estava o negro Epifânio que, após cumprimentar os visitantes e dar-lhes boas vindas da longa viagem, se apressou a conduzir os cavalos para os fundos de seu casebre de pau a pique situada a uns duzentos metros dali, a fim de desarreá-los, servir-lhes água e sal e pô-los a pastar o capim-gordura que viçava à beira do ribeirão próximo.

Dona Chiquinha estava cheia de expectativas em relação a esse encontro, como é fácil imaginar-se, pois nele haveria de ter lugar um concerto de vontades que viria alterar em muito a rotina na velha sede daquele sítio da Fazenda do Paiol. Por isso que, com os raios de sol que ainda se intrometiam a pleno por entre as folhas do vetusto pau d’alho e pelas frinchas da janela lhe chegavam ao quarto, via-se ela ali sentada num antigo catre àquela hora envolvido em leve penumbra, fazia rápido sinal da cruz, depois, mais concentrada, balbuciava meia dúzia de ave-marias em favor de seus melhores augúrios, para, logo em seguida, encaminhar-se para a cozinha.

Nesse dia Maria Crioula, mulher de Epifânio, tinha feito a janta mais cedo a pedido de dona Chiquinha, a fim de que mais tempo houvesse para as conversas com o Seu Antônio e José Ignácio. Com as panelas descansando no guarda-comidas, dona Chiquinha aproveitou o fogo ainda vívido para preparar um café forte ao gosto de Seu Antônio: pegou do mancebo postado sobre o tosco cavalete ao lado do fogão, nele pôs o coador de pano que fora buscar dum galho seco de assa-peixe no terreiro, ateou lume a uns gravetos e pôs a ferver um caneco com água, dentro um naco de rapadura e duas colheres de pó de café.

Não tardou muito, e lá estava ela escarranchada no pilão de baraúna colado à janela de sua saleta de espera a fazer uma boquinha com café e batata doce assada em borralho que apanhava de uma cuia. Como lhe apetecia fazer todas as tardes, ficava ali até ao anoitecer, olhar perdido na estrada estreita que irrompia do cimo da vertente bem à frente, serpenteava nas terras frescas preparadas para o plantio do milho na Fazenda de Orozimbo Azevedo, sumia no declive do boqueirão até alcançar pequena ponte de madeira sobre o córrego que cortava a propriedade, e dali prosseguia em aclive que terminava já bem perto do eirado fronteiriço ao alpendre da casa-sede.

Com efeito, após transitarem por aquela bucólica paisagem tão familiar aos olhos cansados de dona Chiquinha, chegaram afinal os dois visitantes. Já no alpendre, Seu Antônio mantinha-se cabisbaixo e com ar sério, decerto algo preocupado com ocultar as falhas de dois dentes da frente que foram extraídos por um dentista prático de Sapé de Uba, dias atrás, mesmo assim se apressou em abraçar sua comadre, desculpando-se pela demora em atender ao seu chamado, ao que dona Chiquinha respondeu dizendo que compreendia perfeitamente as dificuldades de ele e José Ignácio afastarem-se de suas obrigações, principalmente nessa época do ano, quando se inicia a formação das lavouras de cereais, como arroz e milho. Em seguida, José Ignácio, com a mão direita estendida e segurando com a esquerda o chapeuzinho de palha, corpo ligeiramente curvado em sinal de respeito, pediu bênção à dona Chiquinha, que o atendeu de pronto, “Deus te abençoe, José”.

As conversações entre os três iniciaram-se durante a janta e prolongaram-se até tarde da noite. quando decidiram que já era hora de irem para a cama, Seu Antônio e José Ignácio, a despeito do sono que já lhes fazia pesar as pálpebras e do cansaço a dominar-lhes o corpo inteiro, deixavam transparecer nas fisionomias visível ponta de satisfação. Já no tocante à dona Chiquinha, sua expressão, mais do que de alegria, era de profundo alívio, visto que, dentro de duas semanas, ou seja, no prazo estritamente necessário a que José Ignácio concluísse com o pai o plantio do arroz nas terras de Antônio Queiroz, passaria ela a contar com a presença permanente do afilhado à frente dos atividades e dos negócios desenvolvidos na Fazenda do Paiol, o que se lhe afigurava como derradeira alternativa para a salvação do sítio, haja vista a fragilidade do seu estado de saúde e os graves problemas financeiros que vinham se acumulando desde o falecimento de seu marido Messias Santana.

Embora consciente dos poucos anos de vida que lhe restavam, movia a Dona Chiquinha forte desejo de preservar aquele pedaço de terras ... Eram terras férteis, davam tudo o que nelas se plantava, e poderiam produzir muito mais se mais bem trabalhadas, tratadas, adubadas ... Tinha certeza de que serão o ponto de partida para um futuro melhor de toda a família do Seu Antônio e do próprio José Ignácio, pelo esforço e tabalho inteligente de sol a sol que poderão desenvolver, sabia-o e queria-o dona Chiquinha porque dali tirara sempre o sustento dela propria e de mais várias dezenas de outras famílias, sem falar na ajuda, criação e formação de meninas e menimos deixados aos seus cuidados. Não falecem dúvidas de que a boa velha, encanecida por uma vida difícil, tinha a intuição segura da importância da solidariedade para o sucesso dos grupamentos familiares.

Num determinado momento, quando José Ignácio já se despedira de todos para deitar-se, Seu Antônio chamou dona Chiquinha para um particular. Confidenciou-lhe que já havia notado essa precisão que ela tinha da colaboração de uma pessoa ativa e de confiança para ajudá-la a cuidar das coisas do sítio, e José Ignácio era, também no seu pensar, a pessoa indicada para esse trabalho, apesar de sua idade de apenas 18 anos, nasceu em 1909. Por causa disso, embora sem nada falar ainda a José, tinha tomado a decisão de deixar a Fazenda de Antônio Queiroz, com quem já se vinha desentendendo em várias oportunidades. Pretendia aceitar uma oferta de trabalho e moradia para a família que lhe fizera, havia pouco tempo, outro fazendeiro da região, o Coronel Quinca Martins, a quem tão bem ela conhecia, e de quem Seu Antônio sempre gozou de boa amizade e consideração desde os tempos de sua juventude.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

6 - UM SONHO PREMONITÓRIO

Voltou-se papai para Seu Antônio e, no intuito de aliviar-lhe a mente do peso das preocupações que nela de há muito se acumulavam, passou a relatar-lhe o curioso sonho que tivera à noite anterior.

Disse então que era uma manhã clara de sol, nenhuma nuvem, céu absolutamente azul, e ele, de repente, tal qual um pássaro em exercício lúdico de sua espécie, viu-se sobrevoando serenamente a Fazenda do Paiol, e deleitava-se com a beleza das plantações do milho todo embonecado, com as cintilações de suas estigmas douradas, a estender-se desde as confrontações com as terras do fazendeiro Orozimbo de Azevedo até bem perto do eirado frontal da velha sede, com o arrozal da várzea a leste todo granado e, por fim, o cafezal nas encostas ao sul da Fazenda do Paiol já com os frutos se colorindo em adiantado processo de maturação.

E prosseguia descrevendo com muito entusiasmo e riqueza de detalhes tudo que sua visão descortinava em sonho, como se lhe fosse absolutamente real e verdadeiro. Num determinado momento, prosseguia José Ignácio, surpreendeu-se ao ver em baixo o pai e as três irmãs, todos concentrados no serviço de capina das carreiras do milharal, mas, em vôo mais lento e baixo, quase a roçar os pendões dos pés de milho, avistaram eles a José Ignácio planando sobre suas cabeças e a mostrar-lhes um sorriso largo de felicidade, ao que eles responderam com acenos repetidos de mãos e gritos jubilosos.

Sonho é sonho, filho, nossa realidade é esta que hoje vivemos, alertou seu Antonio: trabalho, trabalho e as cobranças insistentes do nosso patrão Antônio Queiroz por mais e mais trabalho e produção, assim sempre tem sido e sempre foi, agora e lá atrás, com os ex-patrões Júlio Albino, Zeca Mendonça, Quinzinho Pinto e outros. E lembrava Seu Antônio que, além de tudo isso, ainda lhe chegara esse recado de Dona Chiquinha, numa hora difícil daquelas, para alguma precisão que ele não ainda conseguira atinar para o que fosse. Concordo inteiramente com senhor, mas a gente não pode perder a esperança, não é do senhor mesmo que sempre tenho ouvido que a a fé e esperança é o que nos fortalece nas dificuldades e que ainda nos dá algum sabor à vida?

Por certo, aquele sonho de José Ignácio veio despertar-lhe novas energias e expectativas mais otimistas em relação ao seu futuro e ao de sua família, a ponto de encarecer a Seu Antônio que se tranquilizasse, que ali estava o filho mais velho pronto a assumir toda a responsabilidade de arrimo, que se imbui do indesviável propósito de, dentro de mais algum tempo, lograr real mudança naquele quadro familiar de enormes dificuldades e sofrimentos, de pobreza extrema.

Eram muito fortes as esperanças que então animavam a papai de conseguir livrar sua família daquela dependência de uma forma de trabalho quase-escravo e, enfim, proporcionar a ele, seu pai e nosso avô, descanso e assistência, e a todos os mais, irmãs solteiras do primeiro casamento paterno, filho e filhas que nasceram do matrimônio com Cecília, outras condições de trabalho, de moradia e tudo o mais que fosse necessário para que cada qual pudesse progredir mercê do seu próprio esforço e, afinal, conquistar uma vida minimamente digna e descente, deixando aos futuros descendentes exemplos e condições que deverão pavimentar-lhes rumos consistentes de ascenção econômica e social.

Porque fosse ainda quinta-feira, decidiu seu Antônio que não perderiam tempo e procurariam adiantar as obrigações mais urgentes a fim de que, nas primeiras horas de sábado, pudessem partir para a Fazenda do Paiol e, antes, tivessem boas justificativas a apresentar a patrão para não apenas afastar-se da fazenda no próxmo final de semana, como também para obter o empréstimo de dois cavalos para a viagem. Assim, ouvidas as revelações do filho, Seu Antônio levantou-se do banco onde acabara de conversar com o emissário de Dona Chiquinha, com o semblante a revelar visível apreensão, e num aceno de cabeça mandou que os dois filhos José e Izabel o acompanhassem com suas enxadas ... e partiram os três para o inicio de mais uma jornada de trabalho na continuidade de preparação de uma área de várzea para plantio de arroz, cujas mudas adrede preparadas já reclamavam transplante para as respectivas covas em fase de abertura ...